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Comportamento

Quem são as cientistas negras brasileiras?

Redação

[Via El País]

Quando criança, Sonia Guimarães era a segunda melhor aluna da sala e adorava matemática. "Me lembro do primário, fizemos exames e eu fiquei entre as cinco melhores. As melhores iam para a turma da manhã, que tinha privilégios e eu não fui porque a filha de uma das funcionárias queria estudar de manhã. Quem tiraram? A pretinha. Eu me senti depreciada por isso".

Estudante de escola pública durante toda a vida, Sonia trabalhava na adolescência e todo seu dinheiro usava para pagar o cursinho, já que fazia ensino médio técnico. Sonhava em ser engenheira civil. Para realizar seu sonho prestou Mapofei, um vestibular que na década de 1970 dava vagas para as grandes faculdades de engenharia de São Paulo. Mas foi orientada por um professor a colocar como opções no vestibular os cursos que tivessem menor procura. Sua escolha foi para física. "No segundo ano [do curso], eu prestei vestibular para engenharia civil, mas comecei a ter aula de física em estado sólido, a parte da física que estuda materiais sólidos, e me apaixonei".

Sonia Guimarães atualmente é professora de Física no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), uma das instituições de ensino mais conceituadas do país e detém o primeiro título de doutorado em física concedido a uma mulher negra brasileira, porém ela sequer sabia dessa deferência. "Eu descobri por acaso quando o site Black Women of Brazil fez uma matéria sobre isso. Nem meus chefes no ITA sabem disso! Os meus alunos só sabem porque eles pesquisam sobre mim na internet".

Ela ingressou na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 1976, onde também fez seu Mestrado e lembra que só haviam 5 alunos negros na instituição na época. Depois de formada trabalhou um tempo na Itália e de lá se mudou para o Reino Unido, em 1986 para fazer seu doutorado no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester.

A história de Sonia pode ser comparada com a de Katherine Johnson, Mary Jackson e Dorothy Vaughan que faziam parte da equipe de "computadores humanos" da Nasa, na época em que negros não podiam nem mesmo usar os mesmo banheiros que funcionários brancos na Agência. Elas são as protagonistas do filme Estrelas Além do Tempo. A presença de mulheres negras na ciência também é uma raridade no Brasil.

Em 2013, a CNPq solicitou que os pesquisadores brasileiros informassem raça e cor em seus lattes. Um estudo feito em 2015 tendo como base essas informações, mostra que entre 91.103 bolsistas da instituição, cursando pós-graduação, seja em formato de Mestrado, Doutorado ou Iniciação Científica, as mulheres negras que realizam pesquisas voltadas para ciências exatas são pouco mais de 5.000. Em termos de porcentagem, é pouco mais de 0,5%.

Essa pouca diversidade reflete diretamente na forma em como a ciência é produzida no Brasil, como aponta Anna Maria Canavarro Benite. Ela é presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e lembra que o Brasil é um dos maiores produtores de artigos científicos, ocupando o 13º lugar no ranking elaborado pela empresa Thomson Reuters, porém essa produção é descolada da necessidade da população. "O Brasil produz muito. Mas, por exemplo, agora o país vive um surto de febre amarela e essas pesquisas não ajudam a vida prática da sociedade", afirma.

Anita Canavarro, como é conhecida, também é professora de química da Universidade Federal de Goiás (UFG) e dedica sua carreira a "descolonizar" o ensino da disciplina nas escolas públicas. Ela conta que, em geral, as pessoas têm uma ideia de que cientistas são seres iluminados e que isso afasta a participação das meninas nessa área do conhecimento, pois como mostram pesquisas recentes, as garotas não se reconhecem enquanto brilhantes. "Isso é uma falácia. Eu sou mãe, professora e sou uma cientista!".

Antes de ser cientista, a presidenta ABPN era uma moradora da Baixada Fluminense que se aproximou das ciências exatas porque percebeu que os cursos ligados à licenciatura eram menos disputados na Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), quando iniciou sua graduação em 2001. "Uma vez no curso, eu me apaixonei pelos processos de transformação da matéria. Hoje minha leitura de mundo é muito ligada a isso".

A professora explica ainda que a "descolonização" do ensino da química surge da necessidade de colocar o negro como sujeito produtor da tecnologia. "Nós temos traços de apagamento e invisibilização. Vários artefatos tecnológicos são datados desde antes da chegada do colonizador e até hoje não são creditados. A indústria de mineração utiliza postos de destilação que tem arquitetura semelhante de povos africanos que faziam fundição de ferro. E ao mesmo tempo, a primeira Constituição do Brasil proibia negros de irem à escola alegando que eles possuíam moléstias contagiosas".

Ao contrário de Anita e Sonia, Katemari Rosa sempre foi apaixonada pela ciência. "Eu escolhi fazer física porque eu quis descobrir o céu, quando criança me apaixonei por astronomia. A maior parte dos astrônomos são formados em física e eu decidi que queria ser física".

Gaúcha, Katemari estudou no atual Instituto Federal do Rio Grande do Sul(IFRS), que anteriormente era uma escola técnica ligadas à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Ela explica que ter estudado nessa escola foi fundamental em sua trajetória, pois como frequentava o campus da Universidade, ela fazia uso das instalações da instituição como o observatório e o planetário.

Quando ela faz um retorno em sua história, se lembra de casos de racismo que sofreu, mas que na época não identificava como tal, como quando a funcionária da escola que cuidava de estágios a indicou para uma vaga de assistente de dentista, onde além de atender telefone e fazer coisas específicas da função, ela teria que lavar a louça do consultório. "A funcionária jamais indicaria uma daquelas meninas brancas para essa vaga".

O maior choque que teve, porém, foi quando se mudou para Salvador para fazer o Mestrado e encontrou uma cidade com a maioria da população negra e uma Universidade que não espelhava isso, já que no Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA) não havia nenhum professor negro. "A gente tem dificuldade de atribuir ao racismo porque isso significa que existem pessoas pensando que a gente é menos gente. É um mecanismo de defesa, Derrick Bell já dizia. É difícil de escrever e explicar e só quem sente, sabe. A gente tem essas sensações mesmo que não atribua ao racismo, na experiência cotidiana".

A física atualmente trabalha na Universidade Federal de Campina Grande(UFCG), onde concentra seus esforços para formar novos professores que entendam a necessidade de inspirar jovens a seguir no caminho das ciências. "Uma das minhas alunas fez um projeto para examinar livros didáticos de física do ensino médio. Nas imagens analisadas, as pessoas negras só apareciam na parte de mecânica, eram velocistas africanos ou jogadores de futebol. A mulher estava empurrando carrinho de bebê. E, geralmente não são mulheres negras. E a gente pensa que física não tem nada a ver mas está cheio de imagens que reforçam o papel da mulher, o papel do negro. A gente aprende desde cedo onde são nosso lugares. E a ciência ajuda a reforçar isso".

A química Denise Fungaro, por outro lado, confessa que não se atentava para a inexistência de professores e colegas negros quando entrou na Universidade de São Paulo (USP) em 1983. "Eu não sofria discriminação. Nunca tive professores negros, mas como a avaliação é feita através de provas não tem como a pessoa te discriminar. Na época isso [o fato de ser única negra] não chamava atenção, não causava constrangimento. Hoje eu entendo que era exceção, a única aluna negra no curso em um país onde 52% da população é negra". Ela acabou de ser agraciada com o prêmio Kurt Politzer, concedido pela Associação Brasileira de Indústria Química (ABIQUIM), mas seu desejo é servir de inspiração para sua filha que tem três anos. "Eu quero que ela saiba que pode ser bem-sucedida em outras áreas que não sejam exclusivamente artísticas ou esportivas".

Enquanto isso, Sonia Guimarães pensa em se aposentar do ITA, mas não sabe quando. Lembra dos tempos em que trabalhou na Itália e em que estudou na Inglaterra enquanto dá entrevistas para meninas do ensino médio, através do projeto "Elas nas Exatas" ou enquanto trabalha como voluntária ensinando inglês para que outros jovens realizem seus sonhos de uma formação no exterior através do projeto Ciência sem Fronteiras. Tudo isso, sem deixar de ser uma inspiração para as cientistas negras que vieram depois dela.

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