Voz do MS

Crônica Judiciária

Carandiru – uma ferida aberta na história do Brasil

José Trad

José Trad

Desde quando se anunciou, em 2013, o julgamento de 73 policiais acusados do massacre do Carandiru, uma alegação dos advogados de defesa me chamava a atenção: além das condutas de cada policial não terem sido individualizadas na denúncia, a acusação não teria conseguido comprovar no curso do processo como se comportou cada um dos acusados naquele fatídico dia, o que seria indispensável para a análise da responsabilidade de cada qual.

Apesar disso, os policiais foram todos condenados pelo Tribunal do Júri, a penas que variaram entre 96 e 624 anos de prisão.

Entretanto, na semana passada, o Tribunal de Justiça de São Paulo resolveu acolher o recurso da defesa.

Agora, os policiais devem ser submetidos a novo julgamento pelos jurados, porque não cabe ao Tribunal de Justiça, em grau de recurso, substituir-se ao júri, que é soberano no julgamento dos crimes dolosos contra a vida, a teor do que disciplina nossa Constituição Federal.

Isso significar dizer que, no máximo, ao julgar o recurso da defesa ou da acusação, o Tribunal de Justiça pode anular o júri, reduzir ou aumentar a pena do réu, não reformar a sentença condenatória para absolver ou a absolutória para condenar.

Por isso, o voto do desembargador Ivo Sartori, relator do processo no Tribunal de Justiça de São Paulo, que, além de absolver os policiais no recurso da defesa, providência que jamais poderia tomar, teceu considerações, como por exemplo a de que não houve massacre, tenha gerado tanta polêmica.

Na verdade, ao afirmar que não houve massacre e que os policiais não teriam agido “por deleite”, o voto do desembargador Ivo Sartori buscou a todo custo legitimar a atuação da Polícia Militar de São Paulo naquele dia, já reprovada por várias instâncias do Poder Judiciário e por diversos organismos de defesa de direitos humanos nacionais e internacionais.

Não se pode negar que, tecnicamente, é ponderável o argumento da defesa dos policiais, de que não houve comprovação da responsabilidade de cada um deles sobre as mortes e de que agiram obedecendo ordem dos seus superiores, o que poderia levá-los à absolvição.

Esses argumentos, porém, devem ser decididos de forma isenta e soberana pelo Tribunal do Júri, não em grau de recurso pelo Tribunal de Justiça, que deve ser comedido na análise dos processos de competência do júri e, inclusive, na linguagem que se utiliza aos julgar os recursos e incidentes, para não influenciar a decisão futura dos jurados.

Aliás, tamanho foi o excesso com que se houve o desembargador relator desse caso, que, a rigor, seu voto deveria ser desentranhado do processo ou sua leitura como argumento de autoridade proibida pelo juiz que vier a presidir o julgamento.

Felizmente, seu voto não prevaleceu, já que os outros dois desembargadores da Câmara Criminal que decidia o recurso, ao contrário do relator, resolveram determinar a realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri.

Deixo aqui, porém, a minha censura aos excessos de linguagem cometidos pelo relator desse processo que trata de uma chaga aberta da nossa história, e também minha decepção e preocupação com seu voto, que pode “significar uma análise de como a sociedade – e o próprio ser humano – evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia” .

As palavras entre aspas são do Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, proclamadas ao julgar o Recurso Especial n. 1334097.

 

 

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